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sexta-feira, dezembro 19, 2003

SONETO II

Uma mulher me ama. Se eu me fosse
Talvez ela sentisse o desalento
Da árvore jovem que não vê o vento
Inconstante e fiel, tardio e doce

Na sua tarde em flor. Uma mulher
Me ama como a chama ama o silêncio
E o seu amor vitorioso vnece
O desejo da morte que me quer.

Uma mulher me ama. Quando o escuro
Do crepúsculo mórbido e maduro
Me leva a face ao génio dos espelhos

E eu, moço, busco em vão meus olhos velhos
Vindos de ver a morte em mim divina
Uma mulher me ama e me ilumina.

VINICIUS DE MORAIS
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quinta-feira, dezembro 18, 2003

Tenho uma grande constipação
E toda a gente sabe como as grandes constipações
Alteram todo o sistema do Universo,
Zangam-nos contra a vida,
E fazem espirrar até à metafísica.
Tenho o dia perdido cheio de me assoar.
Dói-me a cabeça indistintamente.
Triste condição de um poeta menor!
Hoje sou verdadeiramente um poeta menor.
O que fui outrora foi um desejo; partiu-se.

Adeus para sempre raínha das fadas!
As tuas asas eram de sol, e eu cá vou andando.
Não estarei bem se não me deitar na cama.
Nunca estive bem senão deitando-me no universo.

Excusez un peu... Que grande constipação física!
Preciso de verdade e de aspirina

ÁLVARO DE CAMPOS

quarta-feira, dezembro 17, 2003

SER

Vir à luz em partos duros
- ser erva rasgando a pele
granítica dos muros

Viver em grades desterros
e ser um raio de sol
por entre os ferros

E quando tudo se for
morrer pela madrugada
com a raiz de uma flor
na mão cerrada

LUÍS VEIGA LEITÃO

Libelo

Por caminhos rectos, não sei ir.
Nos ínvios por que vou, não sei ficar.
Suspenso do passado e do porvir,
Venho e vou!, venho e vou!, não sei parar.

Abri as asas das mãos para fugir,
E raízes nos pés para amarrar.
(Levava chão nos pés indo a subir,
Trazia céu nas mãos vindo a baixar...)

Eis, porém, que estes dons ultra-humanizam,
E os homens meus irmãos, se escandalizam
E me espontam as asas e as raízes.

Assim se castram eles próprios, pobres!,
E tendo-se, mais vis,por mais felizes,
Se satisfazem com seus magros cobres.

José Régio

domingo, dezembro 14, 2003

Porque

Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão
Porque os outros têm medo mas tu não.

Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.

Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.

Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN