PANFLETO
Fere-me esta idolatria mais do que todos os crimes:
Tanto fervor desviado e perdido!
Tanta gente ajoelhando à passagem do tempo
e tão poucos lutando para lhe abrir caminho!
Há uma vida inteira a jogar e gastar 
no pano verde imenso das campinas do mundo.  
Há desertos cativos de uma ausência dos povos.
Há uma guerra devastando a vida, 
enquanto a supuserem redimida!
E em nós a redenção quase perdida!...
                                               
Vamos rasgar, ó poetas, esta mentira da alma, 
vamos gritar aos homens que os enganam
que não é a força, que não é a glória, 
que não é o sol nem a lua nem as estrelas
nem os lares nem os filhos, nem os mares floridos,
nem o prazer nem a dor nem a amizade, 
nem o indivíduo só compreendendo as causas,
nem os livros nem os poemas, nem as audácias heróicas, 
— a redenção sou eu, se formos nós sem forma, 
sem liberdade ou corpo, sem programas ou escolas!
Aqui está a redenção. Tomai-a toda.  
E se é verdade a fome, 
se é verdade o abismo, 
se é verdade o pensamento úmido
que pestaneja ansioso nos cortejos públicos, 
se são verdade as redenções que mentem:
Matem essa gente para salvar a Vida!
E matem-me com elas para que as queime ainda!
JORGE DE SENA - 1919-1978
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